Artigo Revista Focus 26.XI.2000
Artigo Jornal de Notícias 30.XI.2000


28 de Novembro de 2000

INVESTIGAÇÃO
"Nature" revela importante descoberta de um grupo de cientistas portugueses

   


A revelação de uma estrutura

Depois de meio ano de troca de correspondência e muita insistência, o editor decidiu submeter o artigo a árbitros científicos


Filomena Naves

DN-Pedro Sousa Dias
PERSISTÊNCIA. Carlos Frazão e Cláudio Gomes foram os responsáveis e os operacionais na cristalografia, que permitiu fazer o retrato molecular da enzima

A troca de correspondência arrastou-se por quase meio ano mas os investigadores do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) decidiram não desistir. O que estava em causa era uma descoberta importante, com potenciais impactos em campos tão diversos como a saúde e nutrição humanas, a indústria e o ambiente. Não se arrependeram. Depois de muitas cartas e contra-cartas, o resultado é o artigo "Structure of a dioxygen reduction enzyme from Desulfovibrio gigas", publicado no número deste mês da Nature Structural Biology. São quatro páginas e meia que significam o culminar de uma década de trabalho e revelam a estrutura de uma enzima presente nas bactérias redutoras de sulfato, que permite a estes microorganismos resistir à presença de oxigénio (que lhes é tóxico), utilizando-o a seu próprio favor. Que impacto é que isto pode ter na saúde humana ou na indústria? É simples. Apesar de pouco conhecidas, estas bactérias anaeróbias (não respiram oxigénio, como nós, mas sulfato) são vulgares e estão disseminadas por vários meios, incluindo o interior do corpo humano. Existem sempre que há sulfato e condições anaeróbias (como no tracto disgestivo) e são responsáveis pelo "cheiro a ovos podres" que por vezes paira nos pântanos e no mar, se houver excesso de organismos em decomposição. Estas bactérias são, aliás, as maiores responsáveis pela corrosão biológica. Degradam a comida, mas são também fundamentais na digestão. Corroem os pileplines e por isso têm um enorme impacto em várias indústrias e no ambiente. "Influenciam-nos muito mais do que poderíamos pensar", sintetiza o investigador António Xavier, um dos líderes da pesquisa.

Tudo começou há dez anos, quando António Xavier e Helena Santos (que não é co-autora do artigo publicado agora na Nature Structural Biology) decidiram aplicar as técnica da ressonância magnética para observar estes microorganismos in vivo, sobre os quais se sabia então muito pouco. "Foi isso que nos permitiu verificar que, na presença de oxigénio, estas bactérias não só sobreviviam, como o aproveitavam para fazer ATP, o nosso combustível celular", conta António Xavier. Por brincadeira chamaram-lhes "aerooportunistas". Mas, para além da graça, a descoberta deu origem a três artigos científicos, em 1993, e constituiu o ponto de partida para o que se seguiu. "Identificámos as enzimas responsáveis por aquele metabolismo, isolámo-las, reconstituímos a cadeia metabólica e identicámos esta que é a enzima final da transformação do oxigénio em água". Um longo caminho que exigiu várias especialidades, incluindo a cristalografia, sem a qual não teria sido possível a determinação da estrutura da enzima. "A descoberta de uma estrutura não é o fim de uma história, mas um começo", diz Miguel Teixeira, também ele investigador-coordenador. "Conhecendo a estrutura podemos começar a perceber como é que as enzimas funcionam", explica, sublinhando que essa compreensão abre outras vias de trabalho e permite colocar novas perguntas.

"Há poucos grupos que têm a possibilidade de publicar uma estrutura totalmente nova". Maria Arménia Carrondo, investigadora líder também, não tem dúvidas da importância desse facto. "Ter sido um grupo de Portugal, além do mais numa revista como a Nature, é marcante e pode ajudar no futuro a alterar a situação de desconfiança que parece haver à partida em publicações deste tipo".

A satisfação é compreensível. Quando recebeu o artigo, o editor da revista recusou-o de imediato. O que ditou a sua publicação foi a insistência do grupo para que o enviasse a referees (árbitros científicos) para apreciação. "As três apreciações feitas foram altamente elogiosas", conclui Maria Arménia Carrondo. O grupo prepara agora a fase seguinte: obter cristais em vários estados para perceber como funciona a molécula e estudar estas enzimas noutros organismos.


Ficha técnica do projecto

Instituição: Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) da Universidade Nova de Lisboa
Investigadores coordenadores: Maria Arménia Carrondo, António Xavier, Miguel Teixeira, Claudina Rodrigues-Pousada e Jean Le Gall
Investigadores:
Carlos Frazão, Gabriela Silva, Cláudio Gomes, Pedro Matias, Ricardo Coelho, Larry Sieker, Sofia Macedo, Ming Y. Liu, Solange Oliveira, Miguel Teixeira, António Xavier, Claudina Rodrigues-Pousada, Maria Arménia Carrondo e Jean Le Gall
Áreas disciplinares:
bioquímica, microbiologia, cristalografia de Raios X e genética molecular, da divisão de química biológica, engenharia de metaloproteínas
Financiamento: Fundação para a Ciência e Tecnologia


Destaques

Novidade. A estrutura da enzima que permite às bactérias redutoras de sulfato utilizarem o oxigénio em seu proveito, destoxificando-se dele ao mesmo tempo, é um centro activo diférrico (com dois átomos de ferro) num arranjo estrutural e espacial muito diferente do que era habitual para proteínas com um centro diférrico. A descoberta "foi uma novidade muito grande em termos estruturais" e, só por si, significa um avanço em termos de biologia.

Defesa. Nesta altura estão descodificados, e continuam a descodificar-se inúmeros genomas completos, de bactérias e de outros organismos. O que se observa na comparação das sequências genéticas é que esta enzima está distribuída por todos os organismos anaeróbios, cujo genoma já é conhecido. Ou seja, agora pode verificar-se que este é um mecanismo geral de defesa comum a este tipo de microorganismos.

Sincrotrão. Para determinar a estrutura da enzima, obtiveram-se cristais (foram necessários dois a três anos para se conseguirem obter os cristais que podiam ser reproduzidos e usados) e foram utilizadas duas instalações de sincrotrão (acelerador de partículas), a de Hamburgo e a do Syncrotron Radiation Facility (de que Portugal é membro desde 1998), para se chegar à descrição, átomo a átomo, da estrutura.

Semelhanças. Se antes de se conhecer a estrutura desta enzima se encontrasse no genoma de uma bactéria a sequência do DNA que lhe corresponde, o que se lhe chamaria era betalactamase. Apesar da semelhança, a betalactamase tem uma actividade completamente diferente: é responsável pela resistência das bactérias aos antibióticos. A partir de agora, quando se detectar a sequência de DNA que codifica a betalactamase, é necessário determinar a sua actividade para verificar se é uma ou outra. Mais: para passar de uma a outra, o número de mutações é extremamente reduzido. Ou seja, uma bactéria que tivesse a enzima que produz a transformação do oxigénio em água, com um mínimo de esforço (duas mutações) deixava de desempenhar uma função de destoxificação do oxigénio para passar a conceder à bactéria resistência a antibióticos. Em termos evolutivos, é através deste mecanismo que se chega muito rapidamente a uma grande variedade de funções com muito poucas mutações.